terça-feira, 15 de julho de 2025

Transparência e Representação: Repensar os Limites da Vida Pública em Democracia

 Transparência e Representação: Repensar os Limites da Vida Pública em Democracia


A democracia exige mais do que legalidade. Exige confiança. Uma confiança que se constrói com transparência, responsabilidade e sentido ético. Em Portugal, a relação entre política e interesses privados tem sido, recorrentemente, motivo de controvérsia pública. O caso recente em torno do Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, sobre uma alegada omissão na declaração de interesses indiretos associados a uma empresa gerida por familiares reacendeu este debate. Mais do que um episódio individual, este momento deve ser lido como oportunidade para refletir com maturidade sobre a ética na ação política, os deveres de transparência e o papel da experiência extra-política na vida pública.

É importante deixar claro que este texto não pretende constituir qualquer forma de  julgamento pessoal ou condenação política. Pelo contrário: parte do princípio de que a política deve ser analisada com seriedade e ponderação. Mas é precisamente por isso que importa não relativizar os episódios que alimentam a desconfiança cívica e corroem a qualidade da democracia.

Quando se exige que um governante declare os seus interesses, diretos ou indiretos, não se trata apenas de um exercício formal. Trata-se de garantir que o exercício de funções públicas não colide com eventuais interesses privados, diretos ou ocultos. A transparência não é um apêndice da democracia: é o seu fundamento. E é justamente por isso que qualquer alegada omissão, mesmo que juridicamente irrelevante, pode ter consequências políticas sérias, alimentando suspeitas e descredibilizando as instituições públicas.

O problema não está, necessariamente, na existência desses vínculos, sobretudo quando se trata de trajetos empresariais legítimos e anteriores à assunção de cargos públicos. O problema está na opacidade. É o não dito, o não declarado, o que mina a confiança pública. Uma democracia saudável precisa de regras claras, mas também de uma cultura política exigente, onde os protagonistas assumem que, quanto maior o poder, maior a responsabilidade e maior a obrigação de escrutínio.

É também necessário rejeitar a visão simplista que desconfia automaticamente de qualquer político com passado empresarial ou profissional. A política precisa de representantes com conhecimento da realidade económica, da vida profissional fora das instituições. Não se constrói um Estado mais eficiente apenas com técnicos ou burocratas. 

Precisamos de pessoas com experiência concreta, com capacidade de entender os desafios da criação de valor, da gestão, da inovação. E não se deve exigir que, para se exercer a função política, se abdique do que se construiu com mérito. A exigência deve ser outra: declarar tudo, com rigor e clareza.

A política não pode ser um mundo fechado, mas também não pode ser um espaço onde zonas de sombra sejam toleradas por complacência legal. A integridade exige visibilidade. A confiança pública constrói-se à luz do dia. E quando há alegações que sugerem ausência de declaração seja rendimentos ou património relevante, ainda que o enquadramento legal não seja claro ou diretamente violado, o impacto político não deixa de existir. A perceção pública é tão relevante como a norma jurídica, sobretudo em democracias assentes na confiança.

A decisão do Governo de apresentar uma moção de confiança na Assembleia da República, face à polémica, surge como um gesto institucional compreensível, mas não me parece necessário, nem politicamente útil. A confiança que se perdeu não foi a dos deputados, mas a dos cidadãos. A democracia parlamentar já tem mecanismos para escrutinar e responsabilizar. Se houve, de facto, uma falha na declaração de interesses por parte do Primeiro-Ministro, algo que ainda carece de prova e investigação, cabe às entidades competentes apurar os factos. Nesse sentido, é de saudar o gesto do próprio Primeiro-Ministro ao solicitar uma auditoria às suas declarações de rendimentos. É esse o caminho certo: confiar nas instituições, sem dramatizações parlamentares.

Uma moção de confiança arrisca, pelo contrário, gerar um efeito político inverso ao desejado: fragilizar o Governo perante a opinião pública e, em caso de rejeição, forçar uma dissolução parlamentar que pode ser vista como uma quebra injustificada do ciclo democrático. Será um erro precipitar uma crise política que não resulta de divergências programáticas, mas de uma questão ética que deve ser analisada com rigor, mas também com proporcionalidade. Os votos que elegeram este governo devem ser respeitados e a estabilidade política preservada enquanto o sistema institucional cumpre o seu papel.

Este episódio deve ser, mais do que tudo, uma oportunidade para reformar. Portugal já possui mecanismos legais para a prevenção de conflitos de interesses, mas estes não têm sido suficientes para lidar com zonas cinzentas, aquelas situações onde não há ilegalidade formal, mas onde há desconforto ético evidente. Talvez seja tempo de propor um pacto mais ambicioso para a ética pública. Um compromisso político e institucional que eleve o padrão da transparência, melhore os registos de interesses, garanta auditorias independentes e estabeleça regras claras sobre conflitos indiretos.

É importante recordar que a existência de conflitos de interesse, por si só, não é necessariamente um problema, é algo expectável numa democracia onde os representantes têm percursos profissionais e património próprios. O que importa é que esses conflitos sejam visíveis, declarados e escrutináveis. A transparência não deve ser encarada como penalização de quem trabalhou e construiu algo, mas sim como condição essencial para garantir confiança e vigilância democrática. O essencial é garantir que todos possam vê-los e controlar eventuais desvios do aceitável.

A democracia portuguesa é sólida, mas não pode resignar-se à complacência ética. A confiança dos cidadãos não se recupera com gestos formais nem com comunicações defensivas. Recupera-se com coerência, responsabilidade e uma cultura pública onde o exemplo pessoal seja parte integrante da vida democrática. Sim, precisamos de políticos que tragam experiência da vida real, que compreendam a economia, a gestão, o mundo do trabalho. Mas precisamos, também, que essa experiência seja colocada ao serviço do bem comum com absoluta transparência.

Porque uma democracia não se sustenta apenas em leis — sustenta-se na confiança. E essa constrói-se à luz do dia. 


Adérito José T. S. A. Rafael

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